sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Prática da Justiça Restaurativa se expande nos tribunais brasileiros

Em funcionamento há cerca de 10 anos no Brasil, a prática da Justiça Restaurativa tem se expandido. Conhecida como uma técnica de solução de conflitos que dá preferência à criatividade e sensibilidade na atenção às vítimas e ofensores, a prática tem iniciativas cada vez mais diversificadas e já coleciona resultados positivos.

Em São Paulo, a Justiça Restaurativa tem sido utilizada em dezenas de escolas públicas e privadas, auxiliando na prevenção e no agravamento de conflitos. No Rio Grande do Sul, juízes aplicam o método para auxiliar nas medidas socioeducativas cumpridas por adolescentes em conflito com a lei, conseguindo recuperar para a sociedade jovens que estavam cada vez mais entregues ao caminho do crime.
No Distrito Federal, o programa é utilizado em crimes de pequeno e médio potencial ofensivo, além dos casos de violência doméstica. Na Bahia e no Maranhão, o método tem solucionado os crimes de pequeno potencial ofensivo, sem a necessidade de prosseguir com processos judiciais.

Pioneiro na implantação do método, o juiz Asiel Henrique de Sousa, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal explica como funciona essa prática e compartilha alguns bons resultados da aplicação da Justiça Restaurativa no Distrito Federal. 

Leia a entrevista com o juiz Asiel de Sousa:
O que significa Justiça Restaurativa?
Costumo dizer que Justiça Restaurativa é uma prática que está buscando um conceito. Em linhas gerais poderíamos dizer que trata-se de um processo colaborativo voltado para resolução de um conflito caracterizado como crime, que envolve a participação maior do infrator e da vítima. Surgiu no exterior, na cultura anglo-saxã. As primeiras experiências vieram do Canadá e da Nova Zelândia e ganharam relevância em várias partes do mundo. Aqui no Brasil ainda estamos em caráter experimental, mas já está em prática há dez anos. Na prática existem algumas metodologias voltadas para esse processo. A mediação vítima-ofensor consiste basicamente em colocá-los num mesmo ambiente guardado de segurança jurídica e física, com o objetivo de que se busque ali um acordo que implique na resolução de outras dimensões do problema que não apenas a punição, como, por exemplo, a reparação de danos emocionais.

Quem faz a Justiça Restaurativa?
Não é o juiz que faz a prática, e sim o mediador que faz o encontro entre vítima e ofensor e eventualmente as pessoas que as apoiam. Apoiar o ofensor não significa apoiar o crime, e sim apoiá-lo no plano de reparação de danos. Nesse ambiente se faz a busca de uma solução que seja aceitável. Não necessariamente o mediador precisa ter formação jurídica, pode ser por exemplo uma assistente social.


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Prende primeiro, pergunta depois

Mais de 40% dos encarcerados brasileiros são presos provisórios que têm as vidas destruídas mesmo quando inocentes, antes de qualquer processo legal

Francisco* estava no sofá assistindo televisão e aproveitando seu primeiro dia de férias, quando a polícia quebrou o portão e invadiu sua casa gritando, com armas em punho. Apesar de não saber do que se tratava, o coletor de lixo não reagiu nem para dizer que era trabalhador de carteira assinada. Por experiência anterior (ele já havia passado seis meses em um Centro de Detenção Provisória e depois inocentado) sabia que seria pior tentar argumentar naquele momento. A filha de 15 anos estava no banho, a esposa e a filha mais nova, de 5 anos, não estavam na casa, localizada no litoral sul de São Paulo. Foi levado algemado para a delegacia do DHPP, na capital. Só então ficou sabendo que a vítima de um sequestro, um homem que pagara 400 mil reais de resgate, havia supostamente reconhecido sua tatuagem em um álbum de pessoas com passagem pelo sistema carcerário, apresentado pela polícia. A vítima teria dito que o sequestrador tinha uma tatuagem no braço, e escolhido Francisco no álbum com fotos de ex-detentos que batiam com a descrição de tipo físico e da tatuagem mostrado pela polícia. Mesmo com provas e testemunhas de que estava trabalhando nos dias em que a vítima afirmou ter ficado 24 horas sob olhares do algoz, em outra cidade, Francisco ficou preso por dois meses no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, em São Paulo, em uma cela “pequenininha assim”, com mais de cinquenta pessoas, “às vezes mais, às vezes menos”, esperando que o delegado chamasse a vítima para um novo reconhecimento.

“O delegado dizia que não estava encontrando o homem” conta a esposa de Francisco, que acabou ela mesma descobrindo o endereço e passando ao delegado. “Só aí que ele ficou sem graça e chamou pra reconhecer” lembra a mulher. Durante os dois meses em que esteve no CDP, Francisco não viu as filhas, porque não queria que as meninas passassem pela humilhação da revista vexatória. O que mais o marcou foram as revistas com cães dentro das celas, quando eram obrigados a se despir e se encolher “com os cães fungando no cangote”.

Quando saiu, perdeu o emprego. “Me disseram que foi porque a empresa foi vendida e tiveram que demitir algumas pessoas” explica. Diz que a filha pequena chora quando vê passar um carro de polícia na rua – tem medo que levem o pai mais uma vez. Sua esposa tem trabalhado dobrado pra sustentar a casa enquanto ele procura outro serviço. Mas com seu nome ainda não liberado do processo, “tá bem difícil”.

O caso de Francisco dá feição humana aos números escandalosos do encarceramento provisório no Brasil, denunciados por vários órgãos de defesa de direitos humanos e, mais recentemente, pelo Relatório Mundial 2015, da Human Rights Watch, publicado em janeiro, que analisa anualmente avanços e retrocessos na proteção dos direitos humanos em mais de 90 países. Sobre o Brasil destaca esse gargalo do sistema penitenciário entre denúncias de tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante e falta de infraestrutura dos presídios. Em setembro de 2014, o Grupo de Trabalho da ONU sobre Prisão Arbitrária também apresentou um relatório apontando a superlotação endêmica, o acesso à justiça severamente deficiente e o encarceramento como regra e não exceção mesmo em casos de delitos leves e sem violência.

Leia matéria completa em:



(Fonte: Agência Pública)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Lei reduz pena por meio da leitura

Lei já muda rotina dos presídios cearenses. Incluindo autores de crimes hediondos, a medida objetiva humanizar o sistema carcerário

Paulo Renato Abreu, jornal O Povo

Daniele estava “na hora certa, no lugar errado” naquela quarta-feira em que foi presa. Era 6 de fevereiro de 2013, quando ela e a mãe foram “detidas por 33”, tráfico de drogas. No Instituto Penal Feminino (IPF), em Itaitinga, se viu cercada de grades cor-de-rosa que não aliviam o cárcere. Na nova rotina, porém, Daniele encontrou uma oportunidade de se redescobrir. “Eu não gostava de ler, mas aqui dentro procurei uma ocupação, uma tarefa”, admite. Cheia de orgulho, a mulher falante e vaidosa se apresenta hoje como a responsável pela biblioteca da unidade prisional.

Toda semana, “a menina que empresta livros” percorre todas as alas, com uma biblioteca móvel, oferecendo títulos para as demais detentas. Nos últimos dias, porém, Daniele tem notado um alvoroço maior toda vez que passa. É a curiosidade em torno da lei da remissão de pena por leitura, que permite o abatimento de quatro dias na prisão por cada obra lida. Já publicada no Diário Oficial do Estado, a redução vale para todos os detentos, inclusive, aqueles que cometeram crimes hediondos. Com o limite de um livro por mês, cada cativo pode  diminuir até 48 dias por ano.

“A pena é entendida por muitos como uma vingança, mas essa é uma lógica que deve ser superada. A remissão é um esforço pela humanização do sistema prisional”, afirma Hélio Leitão, titular da Secretaria da Justiça (Sejus), em visita ao local de trabalho de Daniele, que sorri em acenos de cabeça. A bibliotecária por acidente assume ainda não ter respostas claras para oferecer às suas colegas, pois a lei ainda está sendo implantada pela Sejus, em parceria com a Secretaria da Educação (Seduc). Até o fim de fevereiro, porém, deve estar em pleno vigor.

A Seduc está montando comissão para acompanhar as leituras e definir quais títulos valerão para o abatimento de dias, entre obras filosóficas, sociológicas e literárias. Daniele não sabe se seu livro preferido, A vida na porta da geladeira, de Alice Kuipers, estará entre os selecionados. O enredo conta a relação entre mãe e filha que quase nunca se veem e que se comunicam deixando recados na porta do refrigerador. Para a mulher que vive encarcerada com a mãe, independentemente de remissão, as 240 páginas da ficção seguirão amenizando as noites na realidade.

“Leitura não é tudo”
Um novo 6 de fevereiro chegou e, enquanto Daniele contava um ano presa, a jovem Mariana foi detida por assalto à mão armada. Com “ensino médio completo”, a mais recente capturada já gostava de ler antes do cárcere. “Eu já tinha o hábito da leitura, queria fazer faculdade. Eu tive estudo, família e mesmo assim cheguei aqui”, relata, com voz mansa. Do alto dos 21 anos, ela já aprendeu que “leitura não é tudo”. Entretanto, não deixa de comemorar a lei da remissão. “Outras detentas que não têm costume de ler vão começar a mudar de vida”, projeta.

Longe dali, em seu gabinete, o deputado estadual Heitor Férrer (PDT) critica a lei. “Mesmo que a leitura engrandeça e (o detento) ganhe o prêmio Nobel de Literatura, ele tem de continuar preso. Estão confundindo ressocialização com redução de pena”, acusa o parlamentar. Para Heitor, a remissão pela leitura é um “mecanismo gerador de impunidade” no País. “O preso tem que ler mesmo, estudar, ter um ofício, mas é inaceitável que a leitura por si só reduza a pena”.

Hélio Leitão, titular da Sejus, rebate: “A remissão não pode ser confundida com frouxidão”. O gestor afirma que a redução faz parte de busca por “novas alternativas e modelos” no sistema prisional. “As pessoas que cometeram crimes merecem punição, não perder a dignidade, a condição humana”.

Liberdades
Egresso do sistema prisional cearense, o pesquisador nigeriano Cornelius Okwudili Ezeokeke escreveu Penas mais rígidas: justiça ou vingança?, um dos títulos destaques na biblioteca frequentada por Mariana. Para ele, que cursou o ensino médio no presídio, a leitura figurou como remissão de vida. “Em meu período de detento, a única coisa que me ajudou a superar a realidade degradante foi os livros a que tinha acesso e que me fizeram amar estudar”, defende. “Não tem como ter a educação sem leitura. A população carcerária precisa dessa oportunidade”.


Enquanto aguardam o início efetivo da redução, Daniele e Mariana seguem lendo. A jovem de 21 anos ajuda a amiga contando enredos de livros que lê para que a “emprestadora” espalhe as histórias. Já Daniele se arrisca também na escrita. Ela se alegra sempre que a sua sogra responde as cartas querendo tirar dúvida sobre algum vocábulo. “Eu estou falando bonito agora”, conta, já esperando ansiosa para conhecer a caligrafia da filha de 5 anos.